quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

O mar das maravilhas e dos demónios

Com o objetivo de explicar a origem do mundo, as antigas cosmogonias e as suas narrativas mitológicas elaboradas no contexto da bacia mediterrânica (Mare Nostrum) procuraram sempre personificar e incluir o elemento aquático de uma forma bastante diversificada. Assim, na Teogonia de Hesíodo encontra-se uma explicação para o aparecimento das diferentes entidades marinhas:
A Terra gerou, em primeiro lugar, um ser de dimensão semelhante à sua, O Céu, coberto de estrelas, para que a cobrisse, toda inteira, e fosse dos deuses bem-aventurados a eterna e segura mansão. Ninfas que habitam as montanhas recortadas. E deu ainda à luz o mar estéril onde se encrespavam as ondas, Ponto. Todos eles nasceram sem intervenção do amor. Depois, fecundada pelo Céu, deu à luz o Oceano de correntes profundas…
Todas estas formas elementares da Natureza, que não tinham ainda o estatuto de divindades, não tardaram, por sua vez, a trazer ao mundo uma numerosa descendência e, por exemplo, Tétis e Oceano geraram três mil cursos de água e rios divinos. Estes cursos de água são atualmente menos conhecidos do que os filhos dos primeiros deuses, esses anfitriões do Olimpo, tal como o filho de Cronos e de Reia, Poséidon. As suas numerosas aventuras galantes povoaram rios, ribeiros, fontes e lagos com divindades, destacando-se as Nereidas, e entre estas Galateia, cujas formas se confundem por vezes com as das tentadoras e impiedosas sereias. Assim, provavelmente as lendas atribuídas a Hesíodo davam, mais ou menos fielmente, corpo a séculos de experiência e especulações religiosas e literárias, formalizando o misterioso imaginário marinho, incomensurável, insondável e imprevisível, mas também útil, generoso e sobretudo grandioso e magnífico.
Todo este mundo divino interveio nas aventuras dos homens e dos heróis em peripécias que serão narradas, com deleite, por Homero na Ilíada ou na Odisseia. Este destino poderá aparecer não só como representação alegórica, mas também como protagonista de numerosos episódios que serão retomados e enriquecerão outros textos posteriores. Podem estes ser religiosos, como no Antigo e novo Testamento, ou épicos, na origem das identidades nacionais – tais como La Franciade de Ronsard, de 1572, ou Os Lusíadas de Luís de Camões, no mesmo ano, contemporâneos das traduções dos grandes textos antigos, antes dos romances de aventuras, fundadores de mitos modernos, que surgiram a partir do século XVIII, como Robinson Crusoé de Daniel Defoe até A Ilha do Dia Anterior de Umberto Eco.
Dominique Lobstein, As Idades do Mar, Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, pp. 39-40
Quadro: A Sereia, 1893, de Giulio Aristide Sartorio

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