Os eticistas que se opuseram aos transplantes usaram dois argumentos. O primeiro baseava-se na ideia de que é errado usar pessoas como meio para os fins de outras pessoas. Retirar os órgãos de Teresa teria sido usá-la em benefício de outras crianças; portanto, não se deve fazê-lo.
Será este um argumento sólido? A ideia de que não devemos «usar» pessoas é obviamente apelativa, mas trata-se de uma noção vaga que tem de ser esclarecida. O que significa ao certo? «Usar pessoas» implica geralmente violar a sua autonomia – a capacidade de decidirem por si mesmas como viver as suas próprias vidas, segundo os seus próprios desejos e valores. A autonomia de uma pessoa pode ser violada por meio de manipulação, impostura ou fraude. Por exemplo, posso fingir ser amigo de alguém quando na verdade estou apenas interessado em conhecer a sua irmã; ou posso tentar convencer alguém de que gostará de assistir a um concerto noutra cidade, quando quero apenas que me leve até lá. Em todos estes casos estou a manipular alguém de modo a obter algo para mim próprio. A autonomia é igualmente violada quando as pessoas são forçadas a fazer coisas contra a sua vontade. Isto explica por que razão é errado «usar pessoas»; é errado porque a impostura, a coerção e o engano são errados.
Retirar os órgãos à bebé Teresa não envolveria engano, impostura ou coerção, será que estaríamos a «usá-la» num outro sentido moralmente significativo? Iríamos, é claro usar os seus órgãos em benefício de outra pessoa. Mas fazemos isso sempre que realizamos um transplante. Neste caso, no entanto, iríamos fazê-lo «contra» os seus desejos, isso poderia justificar a nossa oposição; seria uma violação da sua autonomia. Mas a bebé Teresa não é um ser autónomo: não tem desejos e é incapaz de tomar quaisquer decisões.
Quando as pessoas são incapazes de tomar decisões, e outros têm que o fazer em seu lugar, podem adotar duas linhas de orientação razoáveis. Primeiro, podemos perguntar-nos: O que seria melhor para os seus interesses? Se aplicarmos este padrão à bebé Teresa, parece não haver objeções a que lhe retiremos os órgãos, pois, como já vimos, seja qual for a nossa decisão, os seus interesses não serão afetados. Ela, de qualquer maneira, morrerá em breve.
A segunda linha de orientação apela para as preferências da própria pessoa. Poderíamos perguntar: Se pudesse dizer-nos o que quer, que diria ela? Este tipo de pensamento é frequentemente útil quando lidamos com pessoas que sabemos terem preferências mas são incapazes de proferi-las (por exemplo, um paciente em coma que assinou um testamento). Só que, infelizmente, a bebé Teresa não tem preferências sobre coisa alguma e nunca terá. Não podemos, por isso, obter dela qualquer orientação, nem mesmo na nossa imaginação. A conclusão é que ficamos na contingência de fazermos o que consideramos melhor.
James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, Tradução F.J. Azevedo Gonçalves, Gradiva, Lisboa, 2004, pp. 16, 17 e 18
Será este um argumento sólido? A ideia de que não devemos «usar» pessoas é obviamente apelativa, mas trata-se de uma noção vaga que tem de ser esclarecida. O que significa ao certo? «Usar pessoas» implica geralmente violar a sua autonomia – a capacidade de decidirem por si mesmas como viver as suas próprias vidas, segundo os seus próprios desejos e valores. A autonomia de uma pessoa pode ser violada por meio de manipulação, impostura ou fraude. Por exemplo, posso fingir ser amigo de alguém quando na verdade estou apenas interessado em conhecer a sua irmã; ou posso tentar convencer alguém de que gostará de assistir a um concerto noutra cidade, quando quero apenas que me leve até lá. Em todos estes casos estou a manipular alguém de modo a obter algo para mim próprio. A autonomia é igualmente violada quando as pessoas são forçadas a fazer coisas contra a sua vontade. Isto explica por que razão é errado «usar pessoas»; é errado porque a impostura, a coerção e o engano são errados.
Retirar os órgãos à bebé Teresa não envolveria engano, impostura ou coerção, será que estaríamos a «usá-la» num outro sentido moralmente significativo? Iríamos, é claro usar os seus órgãos em benefício de outra pessoa. Mas fazemos isso sempre que realizamos um transplante. Neste caso, no entanto, iríamos fazê-lo «contra» os seus desejos, isso poderia justificar a nossa oposição; seria uma violação da sua autonomia. Mas a bebé Teresa não é um ser autónomo: não tem desejos e é incapaz de tomar quaisquer decisões.
Quando as pessoas são incapazes de tomar decisões, e outros têm que o fazer em seu lugar, podem adotar duas linhas de orientação razoáveis. Primeiro, podemos perguntar-nos: O que seria melhor para os seus interesses? Se aplicarmos este padrão à bebé Teresa, parece não haver objeções a que lhe retiremos os órgãos, pois, como já vimos, seja qual for a nossa decisão, os seus interesses não serão afetados. Ela, de qualquer maneira, morrerá em breve.
A segunda linha de orientação apela para as preferências da própria pessoa. Poderíamos perguntar: Se pudesse dizer-nos o que quer, que diria ela? Este tipo de pensamento é frequentemente útil quando lidamos com pessoas que sabemos terem preferências mas são incapazes de proferi-las (por exemplo, um paciente em coma que assinou um testamento). Só que, infelizmente, a bebé Teresa não tem preferências sobre coisa alguma e nunca terá. Não podemos, por isso, obter dela qualquer orientação, nem mesmo na nossa imaginação. A conclusão é que ficamos na contingência de fazermos o que consideramos melhor.
James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, Tradução F.J. Azevedo Gonçalves, Gradiva, Lisboa, 2004, pp. 16, 17 e 18
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