Uma acção não é um acontecimento como um tremor de terra ou a queda de uma folha morta. A acção, tal como o acontecimento, gera uma modificação no mundo, mas esta modificação, por muito pequena que seja, jamais será anónima ou cega. Trata-se sempre da acção de alguém. Dizer que uma acção é intencional é também sublinhar que uma acção tem sempre uma finalidade. O agente não age por agir. Ele age por ou em vista de qualquer coisa, porque visa um resultado, porque o seu gesto tem um sentido, e o termo “sentido” deve ser entendido em todas as suas acepções, seja como percepção (órgão dos sentidos), como direcção (o fim visado) ou ainda como significação (aquilo que esse fim significa para o actor). Esse fim ou objectivo está incluído na nossa noção de acção.
Aos olhos da maioria dos homens, parece não restarem dúvidas de que também os símios, os burros ou as girafas são criaturas agentes. Outras entidades, como os extraterrestres, no caso de existirem, podem igualmente ser consideradas possíveis candidatos.
Há inúmeras situações que nos permitem ir mais longe na reflexão. Se o bom do Sérgio dá uma bofetada no Alberto quando visava a cara do Raul, esta bofetada é uma verdadeira acção, ainda que o objectivo do Sérgio não fosse esbofetear o Alberto, mas o Raul. Neste caso não se trata de uma não-acção ou de um acontecimento, mas de uma acção falhada, em resultado da ocorrência de um erro. Uma acção é bem-sucedida se o resultado obtido pelo gesto corresponde ao resultado esperado. Uma acção é falhada se o resultado obtido não lhe corresponde. Sublinhe-se, de seguida, que uma acção pode ter inúmeros efeitos colaterais. Com a ajuda de um martelo, o Paulo espeta um prego para pendurar um quadro na parede da sua sala. A martelada dada pelo Paulo espeta o prego efectivamente. Porém, a história não acaba aí. Esta martelada também provoca um barulho ensurdecedor, trespassa a parede, acorda e fura a orelha do vizinho do Paulo, esmaga o polegar do Paulo, faz jorrar gesso e sangue sobre o tapete da sala do Paulo e sobre o tapete do quarto do seu vizinho. Não há dúvida de que o Paulo alcançou o seu objectivo, mas as razões da sua martelada não coincidem com os efeitos provocados. Enfim, registe-se ainda, que há casos nos quais o objectivo visado é alcançado pelo actor sem que a causa da acção pelo qual o objectivo se cumpre coincida com o objectivo. Imaginemos que o Pedro queria matar a sua madrasta e que, atormentado pela ideia, se enfurece e inadvertidamente esmaga um peão disfarçado de palhaço que, por acaso, é a sua madrasta. O Pedro esmagou a sua madrasta e atingiu, portanto, o seu objectivo. Todavia, a causa dessa acção não coincide com o objectivo perseguido pelo Pedro. Pedro, ainda que quisesse liquidar a sua madrasta e efectivamente a tenha liquidado, não realizou a acção de liquidar a sua madrasta. “Ter feito” não significa “ter realizado uma acção”. Uma primeira conclusão parece ser a seguinte: o mesmo gesto fenomenológico pode ser ou não ser uma acção, a mesma acção numérica pode ser bem-sucedida ou falhada, uma acção pode provocar inúmeros efeitos colaterais, o objectivo perseguido pode ser atingido sem que a razão da acção que permite atingi-lo corresponda ao seu objectivo.
FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007,Lisboa, Edições Asa, pp. 85-89
Imagem: joaoverissimo in Olhares
Aos olhos da maioria dos homens, parece não restarem dúvidas de que também os símios, os burros ou as girafas são criaturas agentes. Outras entidades, como os extraterrestres, no caso de existirem, podem igualmente ser consideradas possíveis candidatos.
Há inúmeras situações que nos permitem ir mais longe na reflexão. Se o bom do Sérgio dá uma bofetada no Alberto quando visava a cara do Raul, esta bofetada é uma verdadeira acção, ainda que o objectivo do Sérgio não fosse esbofetear o Alberto, mas o Raul. Neste caso não se trata de uma não-acção ou de um acontecimento, mas de uma acção falhada, em resultado da ocorrência de um erro. Uma acção é bem-sucedida se o resultado obtido pelo gesto corresponde ao resultado esperado. Uma acção é falhada se o resultado obtido não lhe corresponde. Sublinhe-se, de seguida, que uma acção pode ter inúmeros efeitos colaterais. Com a ajuda de um martelo, o Paulo espeta um prego para pendurar um quadro na parede da sua sala. A martelada dada pelo Paulo espeta o prego efectivamente. Porém, a história não acaba aí. Esta martelada também provoca um barulho ensurdecedor, trespassa a parede, acorda e fura a orelha do vizinho do Paulo, esmaga o polegar do Paulo, faz jorrar gesso e sangue sobre o tapete da sala do Paulo e sobre o tapete do quarto do seu vizinho. Não há dúvida de que o Paulo alcançou o seu objectivo, mas as razões da sua martelada não coincidem com os efeitos provocados. Enfim, registe-se ainda, que há casos nos quais o objectivo visado é alcançado pelo actor sem que a causa da acção pelo qual o objectivo se cumpre coincida com o objectivo. Imaginemos que o Pedro queria matar a sua madrasta e que, atormentado pela ideia, se enfurece e inadvertidamente esmaga um peão disfarçado de palhaço que, por acaso, é a sua madrasta. O Pedro esmagou a sua madrasta e atingiu, portanto, o seu objectivo. Todavia, a causa dessa acção não coincide com o objectivo perseguido pelo Pedro. Pedro, ainda que quisesse liquidar a sua madrasta e efectivamente a tenha liquidado, não realizou a acção de liquidar a sua madrasta. “Ter feito” não significa “ter realizado uma acção”. Uma primeira conclusão parece ser a seguinte: o mesmo gesto fenomenológico pode ser ou não ser uma acção, a mesma acção numérica pode ser bem-sucedida ou falhada, uma acção pode provocar inúmeros efeitos colaterais, o objectivo perseguido pode ser atingido sem que a razão da acção que permite atingi-lo corresponda ao seu objectivo.
FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007,Lisboa, Edições Asa, pp. 85-89
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