segunda-feira, 31 de dezembro de 2012
domingo, 30 de dezembro de 2012
O requisito de imparcialidade
Praticamente todas as teorias morais importantes incluem a ideia de imparcialidade. A ideia básica consiste em considerar os interesses de cada indivíduo como igualmente importantes; do ponto de vista moral, não há pessoas privilegiadas. Portanto, cada um de nós tem de reconhecer que o bem-estar dos outros é tão importante como o nosso. Ao mesmo tempo, a exigência de imparcialidade elimina qualquer esquema que trate os membros de determinados grupos como de certa forma inferiores, como os negros, os judeus e outros foram por vezes tratados.
O requisito de imparcialidade está estritamente ligado à ideia de que os juízos morais têm de ser apoiados em boas razões. Considere-se a posição de um racista branco, por exemplo, que defende ser correto que os empregos melhores sejam reservados para as pessoas brancas. Ele sente-se bem com uma situação na qual os executivos das principais empresas e os responsáveis do governo, entre outros, são brancos, enquanto os negros ficam restringidos a tarefas sobretudo subalternas; ele apoia ainda as disposições sociais por meio das quais esta situação se perpetua. Podemos agora perguntar pelas razões para isto; podemos perguntar por que motivo se pensa que isto está certo. Haverá alguma coisa nos brancos que os torne mais adequados para os cargos mais bem pagos e mais prestigiados? Serão eles inerentemente mais inteligentes ou mais empreendedores? Será que se importam mais consigo mesmos e com as suas famílias? Serão capazes de beneficiar mais por terem tais cargos à sua disposição? Em cada um destes casos a resposta parece ser não; e se não houver qualquer boa razão para tratar as pessoas de maneira diferente, a discriminação é inaceitavelmente arbitrária.
O requisito da imparcialidade não é, pois, mais do que uma condenação da arbitrariedade no tratamento das pessoas. É uma regra que nos proíbe de tratar uma pessoa de forma diferente de outra quando não há uma boa razão para o fazer. Mas se isto explica o que está errado no racismo, explica igualmente por que razão em alguns casos específicos não é racista tratar as pessoas de forma diferente. Suponha-se que um realizador de cinema estava a fazer um filme sobre a vida de Martin Luther King, Jr. Teria uma razão muito boa para não recrutar Tom Cruise para o papel de protagonista. É claro que a escolha deste ator não faria sentido. Por haver uma boa razão para isso, a «discriminação» do realizador não seria arbitrária, não sendo por isso vulnerável a críticas.
James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, Tradução F.J. Azevedo Gonçalves, Gradiva, Lisboa, 2004, pp. 30-31
sábado, 29 de dezembro de 2012
sexta-feira, 28 de dezembro de 2012
Raciocínio moral
Os casos da bebé Teresa (…) e Tracy Latimer, (…), podem despertar sentimentos fortes. Estes sentimentos são frequentemente sinal de seriedade moral e podem, pois, ser objeto de admiração. Mas podem também ser um obstáculo à descoberta da verdade: quando temos sentimentos fortes relativamente a uma questão, é tentador pressupor que sabemos pura e simplesmente o que a verdade não pode deixar de ser, sem mesmo termos de tomar em consideração os argumentos do lado contrário. Infelizmente não podemos confiar nos nossos sentimentos, por mais fortes que sejam. Os nossos sentimentos podem ser irracionais: podem não ser mais do que resultados de preconceito, egoísmo ou condicionamento cultural. (Numa dada altura, os sentimentos das pessoas diziam-lhes, por exemplo, que os membros de outras raças eram inferiores e que a escravatura fazia parte do próprio plano divino das coisas.) Além disso, os sentimentos de pessoas diferentes dizem-lhes frequentemente coisas opostas: no caso Tracy Latimer, o sentimento forte de algumas pessoas é que o seu pai devia ter sido condenado a uma pena longa, enquanto outras têm o sentimento igualmente forte de que nunca devia ter sido acusado. Estes sentimentos não podem, no entanto, estar ambos corretos.
Assim, se queremos descobrir a verdade, temos de tentar deixar que os nossos sentimentos sejam guiados, tanto quanto possível, pelos argumentos que se fornecem a favor de cada uma das perspetivas opostas. A moralidade é, antes de mais e acima de tudo, uma questão de aconselhamento racional. Em qualquer circunstância dada, a ação moralmente correta é aquela a favor da qual existirem melhores razões.
(…)
Naturalmente, nem todas as razões passíveis de ser apresentadas são boas razões. Há bons e maus argumentos, e muita da perícia do pensamento moral consiste em saber distinguir uns dos outros. Mas como podemos reconhecer as diferenças? Como devemos proceder para avaliar argumentos? Os exemplos que analisámos ilustram alguns aspetos pertinentes.
A primeira coisa a fazer é entender com clareza os factos. É frequente isto não ser tão fácil como parece. Uma fonte de problemas relaciona-se com a dificuldade que por vezes existe em estabelecer os «factos» - as questões podem ser tão complexas e difíceis que nem mesmo os especialistas concordam entre si. Outro problema é o preconceito humano. É frequente querer acreditar numa versão dos factos para apoiar os nossos preconceitos. Os que reprovam a ação de Robert Latimer, por exemplo, quererão acreditar nas previsões do argumento da derrapagem; os que o compreendem não vão querer acreditar nessas previsões. É fácil imaginar outros exemplos do mesmo género: pessoas que não querem dar dinheiro para a caridade consideram com frequência que as organizações de caridade são esbanjadoras, mesmo quando não têm grandes provas disso; e as pessoas que não gostam de homossexuais afirmam que a comunidade gay inclui um número desmesurado de pedófilos, apesar das provas em contrário. Mas os factos existem independentemente dos nossos desejos, e o pensamento moral responsável começa quando tentamos ver as coisas como elas são.
James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, Tradução F.J. Azevedo Gonçalves, Gradiva, Lisboa, 2004, pp. 27-29
De analfabeta a rainha do xadrez
Phiona Mutesi é uma miúda de 16 anos. Nasceu no Uganda, numa favela, Katwe. Quando tinha nove anos, Phiona foi apresentada a um ex-jogador de futebol, Robert Katende. Ele mostrou-lhe um jogo tão estranho que nem sequer tinha um nome no idioma em que ela se expressava: xadrez. Ela sentiu-se atraída pelas figuras das peças. Começou a jogar
Ler aqui
quinta-feira, 27 de dezembro de 2012
quinta-feira, 20 de dezembro de 2012
Caso Tracy Latimer 3
O argumento da derrapagem.
Isto conduz naturalmente a outro argumento. Quando o Supremo Tribunal do Canadá confirmou a sentença de Robert Latimer, Tracy Walters, diretora da Associação Canadense de Centros para Uma Vida Independente, afirmou-se «agradavelmente surpreendida» pela decisão. «Teria sido na verdade uma bola de neve e um abrir de portas a outras pessoas para decidirem quem vive e quem morre», afirmou.
Outros defensores dos deficientes fizeram eco desta ideia. Podemos compreender Robert Latimer, afirmaram alguns, podemos até ser tentados a pensar que Tracy está melhor morta. No entanto, é perigoso pensar desta forma. Se aceitarmos qualquer tipo de morte piedosa, iremos dar a uma «derrapagem» inevitável, e no final toda a vida terá perdido o seu valor. Onde devemos pois traçar a fronteira? Se a vida de Tracy Latimer não merece ser protegida, o que dizer então de outros deficientes? Que dizer dos velhos, doentes e outros membros «inúteis» da sociedade? Neste contexto, refere-se frequentemente os nazis, que queriam «purificar a raça», e a implicação é que se não queremos acabar como eles, é melhor não darmos os perigosos primeiros passos.
Tem-se usado «argumento da derrapagem» do mesmo género em relação a todo o tipo de questões. O aborto, a fertilização in vitro (FIV) e, mais recentemente, a clonagem, foram criticados por causa daquilo a que podem conduzir. Uma vez que estes argumentos envolvem especulações sobre o futuro, são manifestamente difíceis de avaliar. Por vezes, é possível verificar, em retrospetiva, que as preocupações eram infundadas. Isto aconteceu com a FIV. Quando, em 1978, nasceu Louise Brown, a primeira «bebé proveta», houve uma série de previsões medonhas sobre o que o futuro poderia reservar para ela, a sua família e a sociedade como um todo. Mas nada de mau aconteceu e a FIV tornou-se um procedimento rotineiro usado para ajudar milhares de casais a ter filhos.
Quando o futuro é desconhecido, pode, no entanto, ser difícil determinar se um argumento deste tipo é sólido. Por outro lado, pessoas razoáveis podem discordar sobre o que poderia acontecer se a morte piedosa fosse aceite em casos como o de Tracy Latimer. Isto dá origem a um tipo de impasse frustrante: os desacordos quanto aos méritos da argumentação podem depender simplesmente das inclinações prévias dos interlocutores – os inclinados a defender o senhor Latimer podem pensar que as previsões são irrealistas, enquanto os predispostos a condená-lo insistem na sensatez das previsões.
Vale a pena notar, no entanto, que este tipo de argumento é atreito a usos abusivos. Se não concordamos com alguma coisa, mas não temos qualquer argumento bom contra ela, podemos sempre fazer previsão sobre as suas possíveis consequências; por mais implausível que a previsão seja, ninguém pode provar que esteja errada. Este método pode ser utilizado para contestar quase tudo. Essa é a razão pela qual os argumentos deste tipo devem ser abordados com cuidado.
James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, Tradução F.J. Azevedo Gonçalves, Gradiva, Lisboa, 2004, pp. 25-27
Isto conduz naturalmente a outro argumento. Quando o Supremo Tribunal do Canadá confirmou a sentença de Robert Latimer, Tracy Walters, diretora da Associação Canadense de Centros para Uma Vida Independente, afirmou-se «agradavelmente surpreendida» pela decisão. «Teria sido na verdade uma bola de neve e um abrir de portas a outras pessoas para decidirem quem vive e quem morre», afirmou.
Outros defensores dos deficientes fizeram eco desta ideia. Podemos compreender Robert Latimer, afirmaram alguns, podemos até ser tentados a pensar que Tracy está melhor morta. No entanto, é perigoso pensar desta forma. Se aceitarmos qualquer tipo de morte piedosa, iremos dar a uma «derrapagem» inevitável, e no final toda a vida terá perdido o seu valor. Onde devemos pois traçar a fronteira? Se a vida de Tracy Latimer não merece ser protegida, o que dizer então de outros deficientes? Que dizer dos velhos, doentes e outros membros «inúteis» da sociedade? Neste contexto, refere-se frequentemente os nazis, que queriam «purificar a raça», e a implicação é que se não queremos acabar como eles, é melhor não darmos os perigosos primeiros passos.
Tem-se usado «argumento da derrapagem» do mesmo género em relação a todo o tipo de questões. O aborto, a fertilização in vitro (FIV) e, mais recentemente, a clonagem, foram criticados por causa daquilo a que podem conduzir. Uma vez que estes argumentos envolvem especulações sobre o futuro, são manifestamente difíceis de avaliar. Por vezes, é possível verificar, em retrospetiva, que as preocupações eram infundadas. Isto aconteceu com a FIV. Quando, em 1978, nasceu Louise Brown, a primeira «bebé proveta», houve uma série de previsões medonhas sobre o que o futuro poderia reservar para ela, a sua família e a sociedade como um todo. Mas nada de mau aconteceu e a FIV tornou-se um procedimento rotineiro usado para ajudar milhares de casais a ter filhos.
Quando o futuro é desconhecido, pode, no entanto, ser difícil determinar se um argumento deste tipo é sólido. Por outro lado, pessoas razoáveis podem discordar sobre o que poderia acontecer se a morte piedosa fosse aceite em casos como o de Tracy Latimer. Isto dá origem a um tipo de impasse frustrante: os desacordos quanto aos méritos da argumentação podem depender simplesmente das inclinações prévias dos interlocutores – os inclinados a defender o senhor Latimer podem pensar que as previsões são irrealistas, enquanto os predispostos a condená-lo insistem na sensatez das previsões.
Vale a pena notar, no entanto, que este tipo de argumento é atreito a usos abusivos. Se não concordamos com alguma coisa, mas não temos qualquer argumento bom contra ela, podemos sempre fazer previsão sobre as suas possíveis consequências; por mais implausível que a previsão seja, ninguém pode provar que esteja errada. Este método pode ser utilizado para contestar quase tudo. Essa é a razão pela qual os argumentos deste tipo devem ser abordados com cuidado.
James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, Tradução F.J. Azevedo Gonçalves, Gradiva, Lisboa, 2004, pp. 25-27
quarta-feira, 19 de dezembro de 2012
A Estação dos Natais
A estação dos Natais comercializados chegou. Para quase toda a gente – fora os miseráveis, o que faz muitas exceções – é uma paragem quente e clara no Inverno cinzento. Para a maioria dos celebrantes de hoje, a grande festa cristã fica limitada a dois grandes ritos: comprar de maneira mais ou menos compulsiva, objetos úteis ou não, e empanturrar-se a si e às pessoas da sua intimidade, numa mistura indestrinçável de sentimentos em que entram igualmente a vontade de dar prazer, a ostentação e a necessidade de se divertir. E não esqueçamos os pinheiros, símbolos antiquíssimos que são a perenidade do mundo vegetal, sempre verdes, trazidos da floresta para acabarem morrendo ao calor dos fogões, e os teleféricos despojando esquiadores na neve inviolada.
Embora não sendo nem católica (exceto de nascimento e de tradição), nem protestante (exceto por algumas leituras e influências de alguns grandes exemplos), nem mesmo cristã no sentido pleno do termo, nem por isso me sinto menos levada a celebrar esta festa tão rica de significados e o seu cortejo de festas menores, o São Nicolau e a Santa Lúcia do Norte, a Candelária e os Reis. Mas limitemo-nos ao Natal, esta festa que é de nós todos. Trata-se de um nascimento, de um nascimento como todos deveriam ser, o de uma criança esperada com amor e respeito, trazendo em si a esperança do mundo. Trata-se dos pobres: uma velha balada francesa canta Maria e José procurando timidamente em Belém uma hospedaria para as suas posses, sempre desprezados em favor de clientes mais ricos e reluzentes e por fim insultados por um patrão que “detesta a pobralhada”. É a festa dos homens de boa vontade, como dizia uma admirável fórmula que infelizmente já nem sempre se encontra nas versões modernas dos Evangelhos, desde a serva surda-muda que ajudou Maria no parto até ao José aquecendo fraldas do recém-nascido diante do pequeno fogo, aos pastores, cobertos de sebo mas julgados dignos das visitas dos anjos. É a festa de uma raça tantas vezes desprezada e perseguida, porque é judeu o recém-nascido do grande mito cristão ( falo do mito com respeito, e emprego a palavra no sentido dos etnólogos modernos, significando as grandes verdades que nos ultrapassam e de que precisamos para viver.)
É a festa dos animais que participam no mistério sagrado desta noite, maravilhoso símbolo de que São Francisco e alguns outros santos sentiram a importância, mas que os cristãos comuns desprezam, não procurando nele inspiração. É a festa da comunidade humana, porque é, ou será dentro de dias, a dos três Reis cuja lenda quis que um fosse preto, alegoria viva de todas as raças da Terra levando ao Menino a variedade dos seus dons. É a festa da alegria, mas também da dor, pois que a criança hoje adorada será amanhã o Homem das Dores. É enfim a festa da própria Terra, que nos ícones da Europa do Leste vemos tantas vezes prosternada à entrada da gruta onde o Menino nasceu, a mesma Terra que na sua marcha atravessa nesse momento o ponto do solstício de inverno e nos arrasta a todos para a primavera. Por esta razão, antes que a Igreja tivesse fixado o nascimento de Cristo nesta data, ela era já, nos tempos antigos, a festa do sol.
Parece que não é mau lembrar estas coisas que toda a gente sabe e que tantos esqueceram.
Marguerite Yourcenar, "O Tempo, esse grande escultor", 1976
Embora não sendo nem católica (exceto de nascimento e de tradição), nem protestante (exceto por algumas leituras e influências de alguns grandes exemplos), nem mesmo cristã no sentido pleno do termo, nem por isso me sinto menos levada a celebrar esta festa tão rica de significados e o seu cortejo de festas menores, o São Nicolau e a Santa Lúcia do Norte, a Candelária e os Reis. Mas limitemo-nos ao Natal, esta festa que é de nós todos. Trata-se de um nascimento, de um nascimento como todos deveriam ser, o de uma criança esperada com amor e respeito, trazendo em si a esperança do mundo. Trata-se dos pobres: uma velha balada francesa canta Maria e José procurando timidamente em Belém uma hospedaria para as suas posses, sempre desprezados em favor de clientes mais ricos e reluzentes e por fim insultados por um patrão que “detesta a pobralhada”. É a festa dos homens de boa vontade, como dizia uma admirável fórmula que infelizmente já nem sempre se encontra nas versões modernas dos Evangelhos, desde a serva surda-muda que ajudou Maria no parto até ao José aquecendo fraldas do recém-nascido diante do pequeno fogo, aos pastores, cobertos de sebo mas julgados dignos das visitas dos anjos. É a festa de uma raça tantas vezes desprezada e perseguida, porque é judeu o recém-nascido do grande mito cristão ( falo do mito com respeito, e emprego a palavra no sentido dos etnólogos modernos, significando as grandes verdades que nos ultrapassam e de que precisamos para viver.)
É a festa dos animais que participam no mistério sagrado desta noite, maravilhoso símbolo de que São Francisco e alguns outros santos sentiram a importância, mas que os cristãos comuns desprezam, não procurando nele inspiração. É a festa da comunidade humana, porque é, ou será dentro de dias, a dos três Reis cuja lenda quis que um fosse preto, alegoria viva de todas as raças da Terra levando ao Menino a variedade dos seus dons. É a festa da alegria, mas também da dor, pois que a criança hoje adorada será amanhã o Homem das Dores. É enfim a festa da própria Terra, que nos ícones da Europa do Leste vemos tantas vezes prosternada à entrada da gruta onde o Menino nasceu, a mesma Terra que na sua marcha atravessa nesse momento o ponto do solstício de inverno e nos arrasta a todos para a primavera. Por esta razão, antes que a Igreja tivesse fixado o nascimento de Cristo nesta data, ela era já, nos tempos antigos, a festa do sol.
Parece que não é mau lembrar estas coisas que toda a gente sabe e que tantos esqueceram.
Marguerite Yourcenar, "O Tempo, esse grande escultor", 1976
Caso Tracy Latimer 2
O argumento contra a discriminação dos deficientes.
Quando Robert Latimer foi sentenciado com tolerância pelo tribunal, muitos deficientes encararam o facto como um insulto. O presidente de Saskatoon Voice of People with Disabilities, que sofre de esclerose múltipla, afirmou: «Ninguém tem o direito de decidir se a minha vida tem um valor inferior a outra. Essa é a grande questão.» Tracy foi morta por ser deficiente, afirmou, e isso é inadmissível. As pessoas deficientes deveriam ser tão respeitadas e ter tantos direitos como qualquer outra pessoa.
O que podemos dizer disto? A discriminação contra qualquer grupo de pessoas é naturalmente, um assunto sério. É inaceitável porque implica tratar algumas pessoas de forma diferente de outras, quando não há diferenças relevantes entre elas para o justificar. Exemplos correntes envolvem situações como a discriminação no local de trabalho. Suponha-se que se recusa um trabalho a uma pessoa cega simplesmente porque o patrão não gosta da ideia de empregar alguém incapaz de ver. Isto não é diferente de recusar empregar alguém por ser negro ou judeu. Para sublinhar o quanto isto é ofensivo, poderíamos perguntar por que razão essa pessoa é tratada de forma diferente. É menos capaz de fazer o trabalho? É mais estúpida ou menos diligente? Merece menos o emprego? É menos capaz de beneficiar da circunstância de estar empregada? Se não há qualquer boa razão para a excluir, então é simplesmente arbitrário tratá-la desta forma.
Mas há algumas circunstâncias nas quais pode justificar-se tratar os deficientes de forma diferente. Por exemplo, ninguém iria defender seriamente que uma pessoa cega deveria ser empregada como controladora de tráfego aéreo. Uma vez que podemos explicar facilmente por que motivo isto não é desejável, a «discriminação» não é arbitrária e não é uma violação dos direitos da pessoa deficiente.
Devemos pensar na morte de Tracy Latimer como um caso de discriminação de deficientes? O senhor Latimer argumentou que a paralisia cerebral de Tracy não era a questão. «As pessoas andam a dizer que isto é uma questão relacionada com a deficiência», afirmou, «mas estão enganadas. Isto diz respeito a tortura. Para Tracy, tratava-se de uma questão de mutilação e tortura». Antes da sua morte, Tracy fora submetida a uma importante e delicada intervenção cirúrgica às costas, ancas e pernas, e havia ainda mais cirurgias planeadas. «Tendo em conta a combinação de um tubo para a alimentação, varetas nas costas, a perna cortada e bamba e ainda as chagas causadas pela permanência na cama», afirmou o pai, «como podem as pessoas dizer que ela era uma menina feliz»? No julgamento, três médicos de Tracy deram o seu testemunho sobre a dificuldade de controlar as suas dores. O senhor Latimer negou, por isso, que ela tenha sido morta por causa da paralisia cerebral; foi morta por causa da dor e por não haver esperança para ela.
James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, Tradução F.J. Azevedo Gonçalves, Gradiva, Lisboa, 2004, pp. 24-25
Quando Robert Latimer foi sentenciado com tolerância pelo tribunal, muitos deficientes encararam o facto como um insulto. O presidente de Saskatoon Voice of People with Disabilities, que sofre de esclerose múltipla, afirmou: «Ninguém tem o direito de decidir se a minha vida tem um valor inferior a outra. Essa é a grande questão.» Tracy foi morta por ser deficiente, afirmou, e isso é inadmissível. As pessoas deficientes deveriam ser tão respeitadas e ter tantos direitos como qualquer outra pessoa.
O que podemos dizer disto? A discriminação contra qualquer grupo de pessoas é naturalmente, um assunto sério. É inaceitável porque implica tratar algumas pessoas de forma diferente de outras, quando não há diferenças relevantes entre elas para o justificar. Exemplos correntes envolvem situações como a discriminação no local de trabalho. Suponha-se que se recusa um trabalho a uma pessoa cega simplesmente porque o patrão não gosta da ideia de empregar alguém incapaz de ver. Isto não é diferente de recusar empregar alguém por ser negro ou judeu. Para sublinhar o quanto isto é ofensivo, poderíamos perguntar por que razão essa pessoa é tratada de forma diferente. É menos capaz de fazer o trabalho? É mais estúpida ou menos diligente? Merece menos o emprego? É menos capaz de beneficiar da circunstância de estar empregada? Se não há qualquer boa razão para a excluir, então é simplesmente arbitrário tratá-la desta forma.
Mas há algumas circunstâncias nas quais pode justificar-se tratar os deficientes de forma diferente. Por exemplo, ninguém iria defender seriamente que uma pessoa cega deveria ser empregada como controladora de tráfego aéreo. Uma vez que podemos explicar facilmente por que motivo isto não é desejável, a «discriminação» não é arbitrária e não é uma violação dos direitos da pessoa deficiente.
Devemos pensar na morte de Tracy Latimer como um caso de discriminação de deficientes? O senhor Latimer argumentou que a paralisia cerebral de Tracy não era a questão. «As pessoas andam a dizer que isto é uma questão relacionada com a deficiência», afirmou, «mas estão enganadas. Isto diz respeito a tortura. Para Tracy, tratava-se de uma questão de mutilação e tortura». Antes da sua morte, Tracy fora submetida a uma importante e delicada intervenção cirúrgica às costas, ancas e pernas, e havia ainda mais cirurgias planeadas. «Tendo em conta a combinação de um tubo para a alimentação, varetas nas costas, a perna cortada e bamba e ainda as chagas causadas pela permanência na cama», afirmou o pai, «como podem as pessoas dizer que ela era uma menina feliz»? No julgamento, três médicos de Tracy deram o seu testemunho sobre a dificuldade de controlar as suas dores. O senhor Latimer negou, por isso, que ela tenha sido morta por causa da paralisia cerebral; foi morta por causa da dor e por não haver esperança para ela.
James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, Tradução F.J. Azevedo Gonçalves, Gradiva, Lisboa, 2004, pp. 24-25
terça-feira, 18 de dezembro de 2012
segunda-feira, 17 de dezembro de 2012
sábado, 15 de dezembro de 2012
Caso Tracy Latimer
Tracy Latimer, uma menina de doze anos vítima de paralisia cerebral, foi morta pelo pai em 1993. Tracy vivia com a família numa quinta de uma pradaria de Saskatchewan, no Canadá. Numa manhã de domingo, enquanto a mulher e os filhos estavam na missa, Robert Latimer pôs Tracy na cabina da sua carrinha de caixa aberta e asfixiou-a com o fumo de escape. Na altura da morte, Tracy pesava menos de dezoito quilos; diz-se que tinha «um nível mental idêntico ao de um bebé de três meses». A senhora Latimer afirmou ter ficado aliviada por encontrar Tracy morta ao chegar a casa, e acrescentou que «não tinha coragem» para o fazer.
O senhor Latimer foi julgado por homicídio, mas o juiz e os jurados não quiseram tratá-lo com demasiada dureza. O júri considerou-o apenas culpado de homicídio de segundo grau e recomendou ao juiz para ignorar a sentença obrigatória de vinte e cinco anos de prisão. O juiz concordou e sentenciou Latimer a um ano de cadeia, seguido de um ano de prisão domiciliária na sua quinta. No entanto, o Supremo Tribunal do Canadá revogou a sentença e ordenou a imposição da sentença obrigatória. Robert Latimer está ainda detido, cumprindo uma pena de vinte e cinco anos.
Questões legais à parte, será que o senhor Latimer fez algo de errado? Este caso envolve muitas das questões que já vimos nos outros casos. Um argumento contra o senhor Latimer é que a vida de Tracy tinha valor moral, não tendo ele por isso o direito de a matar. Em sua defesa pode responder-se que a situação de Tracy era tão catastrófica que ela não tinha quaisquer perspetivas de uma «vida» em qualquer sentido além do puramente biológico. A sua existência estava reduzida a nada mais do que sofrimento sem sentido, pelo que matá-la foi um ato de misericórdia. Considerando estes argumentos, parece que talvez o senhor Latimer tenha agido de forma defensável. Houve, no entanto, outros argumentos avançados pelos críticos.
James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, Tradução F.J. Azevedo Gonçalves, Gradiva, Lisboa, 2004, p. 23
O senhor Latimer foi julgado por homicídio, mas o juiz e os jurados não quiseram tratá-lo com demasiada dureza. O júri considerou-o apenas culpado de homicídio de segundo grau e recomendou ao juiz para ignorar a sentença obrigatória de vinte e cinco anos de prisão. O juiz concordou e sentenciou Latimer a um ano de cadeia, seguido de um ano de prisão domiciliária na sua quinta. No entanto, o Supremo Tribunal do Canadá revogou a sentença e ordenou a imposição da sentença obrigatória. Robert Latimer está ainda detido, cumprindo uma pena de vinte e cinco anos.
Questões legais à parte, será que o senhor Latimer fez algo de errado? Este caso envolve muitas das questões que já vimos nos outros casos. Um argumento contra o senhor Latimer é que a vida de Tracy tinha valor moral, não tendo ele por isso o direito de a matar. Em sua defesa pode responder-se que a situação de Tracy era tão catastrófica que ela não tinha quaisquer perspetivas de uma «vida» em qualquer sentido além do puramente biológico. A sua existência estava reduzida a nada mais do que sofrimento sem sentido, pelo que matá-la foi um ato de misericórdia. Considerando estes argumentos, parece que talvez o senhor Latimer tenha agido de forma defensável. Houve, no entanto, outros argumentos avançados pelos críticos.
James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, Tradução F.J. Azevedo Gonçalves, Gradiva, Lisboa, 2004, p. 23
sexta-feira, 14 de dezembro de 2012
quinta-feira, 13 de dezembro de 2012
quarta-feira, 12 de dezembro de 2012
terça-feira, 11 de dezembro de 2012
segunda-feira, 10 de dezembro de 2012
sexta-feira, 7 de dezembro de 2012
segunda-feira, 3 de dezembro de 2012
sábado, 1 de dezembro de 2012
Não, não é cansaço
Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...
Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.
Não. Cansaço porquê?
É uma sensação abstracta
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...
Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.
(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)
Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...
Álvaro de Campos
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...
Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.
Não. Cansaço porquê?
É uma sensação abstracta
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...
Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.
(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)
Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...
Álvaro de Campos
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