O argumento da derrapagem.
Isto conduz naturalmente a outro argumento. Quando o Supremo Tribunal do Canadá confirmou a sentença de Robert Latimer, Tracy Walters, diretora da Associação Canadense de Centros para Uma Vida Independente, afirmou-se «agradavelmente surpreendida» pela decisão. «Teria sido na verdade uma bola de neve e um abrir de portas a outras pessoas para decidirem quem vive e quem morre», afirmou.
Outros defensores dos deficientes fizeram eco desta ideia. Podemos compreender Robert Latimer, afirmaram alguns, podemos até ser tentados a pensar que Tracy está melhor morta. No entanto, é perigoso pensar desta forma. Se aceitarmos qualquer tipo de morte piedosa, iremos dar a uma «derrapagem» inevitável, e no final toda a vida terá perdido o seu valor. Onde devemos pois traçar a fronteira? Se a vida de Tracy Latimer não merece ser protegida, o que dizer então de outros deficientes? Que dizer dos velhos, doentes e outros membros «inúteis» da sociedade? Neste contexto, refere-se frequentemente os nazis, que queriam «purificar a raça», e a implicação é que se não queremos acabar como eles, é melhor não darmos os perigosos primeiros passos.
Tem-se usado «argumento da derrapagem» do mesmo género em relação a todo o tipo de questões. O aborto, a fertilização in vitro (FIV) e, mais recentemente, a clonagem, foram criticados por causa daquilo a que podem conduzir. Uma vez que estes argumentos envolvem especulações sobre o futuro, são manifestamente difíceis de avaliar. Por vezes, é possível verificar, em retrospetiva, que as preocupações eram infundadas. Isto aconteceu com a FIV. Quando, em 1978, nasceu Louise Brown, a primeira «bebé proveta», houve uma série de previsões medonhas sobre o que o futuro poderia reservar para ela, a sua família e a sociedade como um todo. Mas nada de mau aconteceu e a FIV tornou-se um procedimento rotineiro usado para ajudar milhares de casais a ter filhos.
Quando o futuro é desconhecido, pode, no entanto, ser difícil determinar se um argumento deste tipo é sólido. Por outro lado, pessoas razoáveis podem discordar sobre o que poderia acontecer se a morte piedosa fosse aceite em casos como o de Tracy Latimer. Isto dá origem a um tipo de impasse frustrante: os desacordos quanto aos méritos da argumentação podem depender simplesmente das inclinações prévias dos interlocutores – os inclinados a defender o senhor Latimer podem pensar que as previsões são irrealistas, enquanto os predispostos a condená-lo insistem na sensatez das previsões.
Vale a pena notar, no entanto, que este tipo de argumento é atreito a usos abusivos. Se não concordamos com alguma coisa, mas não temos qualquer argumento bom contra ela, podemos sempre fazer previsão sobre as suas possíveis consequências; por mais implausível que a previsão seja, ninguém pode provar que esteja errada. Este método pode ser utilizado para contestar quase tudo. Essa é a razão pela qual os argumentos deste tipo devem ser abordados com cuidado.
James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, Tradução F.J. Azevedo Gonçalves, Gradiva, Lisboa, 2004, pp. 25-27
Isto conduz naturalmente a outro argumento. Quando o Supremo Tribunal do Canadá confirmou a sentença de Robert Latimer, Tracy Walters, diretora da Associação Canadense de Centros para Uma Vida Independente, afirmou-se «agradavelmente surpreendida» pela decisão. «Teria sido na verdade uma bola de neve e um abrir de portas a outras pessoas para decidirem quem vive e quem morre», afirmou.
Outros defensores dos deficientes fizeram eco desta ideia. Podemos compreender Robert Latimer, afirmaram alguns, podemos até ser tentados a pensar que Tracy está melhor morta. No entanto, é perigoso pensar desta forma. Se aceitarmos qualquer tipo de morte piedosa, iremos dar a uma «derrapagem» inevitável, e no final toda a vida terá perdido o seu valor. Onde devemos pois traçar a fronteira? Se a vida de Tracy Latimer não merece ser protegida, o que dizer então de outros deficientes? Que dizer dos velhos, doentes e outros membros «inúteis» da sociedade? Neste contexto, refere-se frequentemente os nazis, que queriam «purificar a raça», e a implicação é que se não queremos acabar como eles, é melhor não darmos os perigosos primeiros passos.
Tem-se usado «argumento da derrapagem» do mesmo género em relação a todo o tipo de questões. O aborto, a fertilização in vitro (FIV) e, mais recentemente, a clonagem, foram criticados por causa daquilo a que podem conduzir. Uma vez que estes argumentos envolvem especulações sobre o futuro, são manifestamente difíceis de avaliar. Por vezes, é possível verificar, em retrospetiva, que as preocupações eram infundadas. Isto aconteceu com a FIV. Quando, em 1978, nasceu Louise Brown, a primeira «bebé proveta», houve uma série de previsões medonhas sobre o que o futuro poderia reservar para ela, a sua família e a sociedade como um todo. Mas nada de mau aconteceu e a FIV tornou-se um procedimento rotineiro usado para ajudar milhares de casais a ter filhos.
Quando o futuro é desconhecido, pode, no entanto, ser difícil determinar se um argumento deste tipo é sólido. Por outro lado, pessoas razoáveis podem discordar sobre o que poderia acontecer se a morte piedosa fosse aceite em casos como o de Tracy Latimer. Isto dá origem a um tipo de impasse frustrante: os desacordos quanto aos méritos da argumentação podem depender simplesmente das inclinações prévias dos interlocutores – os inclinados a defender o senhor Latimer podem pensar que as previsões são irrealistas, enquanto os predispostos a condená-lo insistem na sensatez das previsões.
Vale a pena notar, no entanto, que este tipo de argumento é atreito a usos abusivos. Se não concordamos com alguma coisa, mas não temos qualquer argumento bom contra ela, podemos sempre fazer previsão sobre as suas possíveis consequências; por mais implausível que a previsão seja, ninguém pode provar que esteja errada. Este método pode ser utilizado para contestar quase tudo. Essa é a razão pela qual os argumentos deste tipo devem ser abordados com cuidado.
James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, Tradução F.J. Azevedo Gonçalves, Gradiva, Lisboa, 2004, pp. 25-27
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