quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Cosmos - Céu e Inferno

O Cavaleiro Inexistente

O cavaleiro não fez nenhum gesto. A sua mão direita, calçada de guantes bem ajustados, agarrou com mais força o arção da sela, enquanto o outro braço, que segurava o escudo, parecia agitado por um calafrio.
- Eh, paladino, é convosco que falo! – insistiu Carlos Magno. – Porque não mostrais o rosto ao vosso rei?
A voz saiu nítida da babeira. – Porque eu não existo, Sire.
- Ora esta! – exclamou o imperador. – Temos agora nas nossas forças um cavaleiro que não existe. Deixa ver.
Agilulfo ainda pareceu hesitar. Depois, com a mão firme, mas lenta, levantou a viseira. O elmo estava vazio. Na armadura branca de irisada cimeira não estava ninguém.
- Olha, olha! Vê-se cada uma! – disse Carlos Magno. – E como é que fazeis para prestar serviço, se não existis?
- Com a força de vontade – disse Agilulfo – e a fé na nossa causa!
- Sim senhor, bem dito. É assim que se cumpre o dever. Bem, para um homem que não existe, tendes bom aspecto.

Italo Calvino, O Cavaleiro Inexistente, tradução de Fernanda Ribeiro, Editorial Teorema, Lisboa, 1986, pp. 10-11

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O Cavaleiro Inexistente

-E vós? - O rei tinha parado em frente de um cavaleiro de armadura toda branca; só uma risca negra corria em redor das orlas, mas, no resto, era imaculada, impecável, sem um arranhão, bem acabada no seu conjunto, tendo no cimo do elmo um penacho de, sabe-se lá, que raça oriental de galo, matizado de todas as cores do arco-íris. No escudo estava desenhado um brasão entre as duas orlas de um amplo manto drapejado; dentro do brasão abriam-se outras duas orlas de manto, tendo, no centro, um brasão ainda mais pequeno, que continha, por seu turno, um outro brasão, mais pequeno ainda. Com um traçado, cada vez mais subtil, estava figurada uma série de mantos que se escondiam uns dentro dos outros e, no fundo, devia haver qualquer coisa, mas que não se conseguia descobrir, de tal maneira o desenho se tornava minúsculo. – E vós, aí tão asseado… - disse Carlos Magno, que, quanto mais a guerra durava menos respeito tinha pela limpeza dos paladinos.
- Eu sou – a voz saía metálica de dentro do elmo fechado, como se saísse, não de uma garganta, mas da vibração do próprio aço da armadura e com uma ligeira repercussão de eco – Agilulfo Emo Bertrandino das Guildivernas e outras, de Carpentras e Sura, cavaleiro de Selímpia Citerior e Fez!
- Aaah … - fez Carlos Magno, e avançou o lábio inferior dando um pequeno assobio como que a dizer: «Se tivesse de me recordar do nome de todos, estava bem arranjado!» Mas de repente franziu os sobrolhos. – Porque não levantaste a viseira e não mostraste o rosto?

pp. 8-9

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O Cavaleiro Inexistente

Sob as muralhas vermelhas de Paris alinhava o exército de França. Carlos Magno devia passar em revista os paladinos. Há mais de três horas que estavam ali. Era uma tarde um pouco encoberta e enevoada de princípios de Verão. Nas armaduras fervia-se como numa panela posta a cozer a fogo lento. Talvez alguém, naquela fila imóvel de cavaleiros, tivesse perdido os sentidos ou simplesmente adormecido, mas a armadura mantinha-os firmes nas selas, todos da mesma maneira. De súbito, três vibrações de trompa: as plumas das cimeiras estremeceram no ar imóvel e cala-se, num instante, aquela espécie de mugido marinho que se tinha ouvido até ali, que não era senão o sussurro dos guerreiros abafado pela embocadura dos elmos. Ei-lo finalmente, Carlos Magno que avançava, lá ao longe, num cavalo que parecia maior que o natural, a barba sobre o peito e as mãos pousadas no cepilho da sela. Reinar e guerrear, guerrear e reinar, sem tréguas nem descanso. Parecia um pouco envelhecido desde a última vez que o tinham visto aqueles guerreiros.
Parava o cavalo diante de cada oficial e voltava-se para olhar de alto a baixo. – E quem sois vós, paladino de França?

pp.5-6

SALTARELLO

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Verão
















Edward Hopper,Summertime, 1943



O Verão É Assim


O verão é assim: a masculina e mineral
e quase táctil vibração das cigarras.
Não sou apenas eu, também elas
se alimentam de claridade,
fogem do escuro.
Porque o escuro é onde se abrigam
a calúnia e a usura,
o escuro é onde a vaidade
e a demência do lucro acorrem
ao apelo do mais rasteiro.
O Céu não passa de um imenso
e vazio buraco negro,
mas tenho a esperança que o Inferno
conserve ainda activas as fogueiras
da inquisição, e nas suas chamas
possam ouvir-se um dia
esses cães, que tanto abusam do poder,
rechinar – como as cigarras no verão.

Eugénio de Andrade

In O Sal da Língua

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Sermão de Santo António aos Peixes

S. Jerónimo - José de Ribera




















S. Jerónimo, Museu Regional de Beja


José de Ribera (Xàtiva, 12 de Janeiro de 1591 – Nápoles, 1652); pintor tenebrista espanhol do sec. XVII, também conhecido como Giusepe de Ribera ou com o nome italianizado de: Giuseppe Ribera. Foi apelidado pelos seus contemporâneos como Lo Spagnoletto, «el espanholito», por ser de baixa estatura e porque reivindicava as suas origens assinando como «Jusepe de Ribera, espanhol» o «setabense» (de Játiva).
Ribera é um pintor destacado da Escola Espanhola, embora a sua obra se tenha integralmente realizado em Itália não se conhecendo de facto exemplos seguros dos seus inícios em Espanha. Wikipédia
Um pintor tenebrista abusa dos contrastes entre o claro e o escuro (“chiaroscuro”), dando mais ênfase ao escuro, o que afeta toda a composição da pintura.aqui

Danúbio Azul