sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A ação jamais será anónima ou cega

















Uma acção não é um acontecimento como um tremor de terra ou a queda de uma folha morta. A acção, tal como o acontecimento, gera uma modificação no mundo, mas esta modificação, por muito pequena que seja, jamais será anónima ou cega. Trata-se sempre da acção de alguém. Dizer que uma acção é intencional é também sublinhar que uma acção tem sempre uma finalidade. O agente não age por agir. Ele age por ou em vista de qualquer coisa, porque visa um resultado, porque o seu gesto tem um sentido, e o termo “sentido” deve ser entendido em todas as suas acepções, seja como percepção (órgão dos sentidos), como direcção (o fim visado) ou ainda como significação (aquilo que esse fim significa para o actor). Esse fim ou objectivo está incluído na nossa noção de acção.
Aos olhos da maioria dos homens, parece não restarem dúvidas de que também os símios, os burros ou as girafas são criaturas agentes. Outras entidades, como os extraterrestres, no caso de existirem, podem igualmente ser consideradas possíveis candidatos.
Há inúmeras situações que nos permitem ir mais longe na reflexão. Se o bom do Sérgio dá uma bofetada no Alberto quando visava a cara do Raul, esta bofetada é uma verdadeira acção, ainda que o objectivo do Sérgio não fosse esbofetear o Alberto, mas o Raul. Neste caso não se trata de uma não-acção ou de um acontecimento, mas de uma acção falhada, em resultado da ocorrência de um erro. Uma acção é bem-sucedida se o resultado obtido pelo gesto corresponde ao resultado esperado. Uma acção é falhada se o resultado obtido não lhe corresponde. Sublinhe-se, de seguida, que uma acção pode ter inúmeros efeitos colaterais. Com a ajuda de um martelo, o Paulo espeta um prego para pendurar um quadro na parede da sua sala. A martelada dada pelo Paulo espeta o prego efectivamente. Porém, a história não acaba aí. Esta martelada também provoca um barulho ensurdecedor, trespassa a parede, acorda e fura a orelha do vizinho do Paulo, esmaga o polegar do Paulo, faz jorrar gesso e sangue sobre o tapete da sala do Paulo e sobre o tapete do quarto do seu vizinho. Não há dúvida de que o Paulo alcançou o seu objectivo, mas as razões da sua martelada não coincidem com os efeitos provocados. Enfim, registe-se ainda, que há casos nos quais o objectivo visado é alcançado pelo actor sem que a causa da acção pelo qual o objectivo se cumpre coincida com o objectivo. Imaginemos que o Pedro queria matar a sua madrasta e que, atormentado pela ideia, se enfurece e inadvertidamente esmaga um peão disfarçado de palhaço que, por acaso, é a sua madrasta. O Pedro esmagou a sua madrasta e atingiu, portanto, o seu objectivo. Todavia, a causa dessa acção não coincide com o objectivo perseguido pelo Pedro. Pedro, ainda que quisesse liquidar a sua madrasta e efectivamente a tenha liquidado, não realizou a acção de liquidar a sua madrasta. “Ter feito” não significa “ter realizado uma acção”. Uma primeira conclusão parece ser a seguinte: o mesmo gesto fenomenológico pode ser ou não ser uma acção, a mesma acção numérica pode ser bem-sucedida ou falhada, uma acção pode provocar inúmeros efeitos colaterais, o objectivo perseguido pode ser atingido sem que a razão da acção que permite atingi-lo corresponda ao seu objectivo.

FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007,Lisboa, Edições Asa, pp. 85-89


Imagem: joaoverissimo in Olhares

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Flor do Deserto




Waris Dirie (nome que significa Flor do Deserto) tem uma vida dupla – durante o dia, é uma modelo famosa a nível internacional e porta-voz das Nações Unidas para os direitos das mulheres em África; à noite, os seus sonhos levam-na de volta a casa, na Somália.

Waris nasceu numa família tradicional de doze filhos, numa tribo de nómadas do deserto africano. Recorda-se da sua infância despreocupada – as brincadeiras com os irmãos, as corridas de camelos, as mudanças da família para os novos locais de pastagem... Até ao dia em que chegou a sua vez de conhecer a anciã que lhe iria aplicar o antigo costume imposto à maioria das raparigas somalis: a mutilação genital. Waris sofreu esta tortura quando tinha apenas cinco anos de idade. Quando, já com doze anos, o seu pai tentou negociar o seu casamento com um desconhecido de sessenta anos em troca de cinco camelos, Waris desapareceu. Após uma extraordinária fuga pelo deserto, conseguiu chegar a Londres, onde trabalhou como empregada do embaixador da Somália, até ao regresso deste a África.
Sem dinheiro e com poucos conhecimentos da língua inglesa, empregou-se então como porteira do MacDonalds, onde viria a ser descoberta por um fotógrafo de moda. A sua história é uma fonte de inspiração e um extraordinário auto-retrato de uma mulher memorável, cuja personalidade é tão arrebatadora como a sua beleza.

Edições Asa

Mutilação Genital Feminina

Penso que não vou surpreender ninguém se afirmar que hoje, mais do que nunca, estão presentes em Portugal religiões, etnias e culturas diferentes e variadas. Essa diversidade deveria ser uma porta aberta para o Mundo e o seu reconhecimento um dever do Estado e da sociedade. Todavia, a fé, os costumes e as tradições, por vezes, não permitem a abertura necessária para que a integração seja feita de forma parcial, pois os atropelos à dignidade e à integridade física e mental das pessoas são, em algumas culturas, frequentes.
A prática da mutilação genital feminina (excisão) insere-se neste contexto. De um modo geral, trata-se de práticas que vão desde o corte simbólico, parcial ou mesmo destruição total do clitóris a sangue frio.
Alguns historiados prevêem que o costume da excisão tem a sua origem mesmo antes do século V a.C., sendo já nessa altura praticada entre os fenícios e os etíopes, mas não se remete somente a países como a África ou mesmo o Egipto. Na Europa, nos séculos XIX e XX as mulheres eram excisadas com o intuito de se livrarem de? males? mentais e sexuais (masturbação e lesbianismo). Hoje em dia, esta prática ainda é vivida por mulheres em 28 países africanos e alguns asiáticos. No entanto, já se torna frequente, em países onde a mutilação genital feminina não é uma prática tradicional, ser exercida por comunidades imigrantes, que é o caso de Portugal.
Por ano, cerca de dois milhões de raparigas sofrem mutilações genitais. Em todo o Mundo existem cerca de 135 milhões de jovens e mulheres que já sofreram uma excisão, número ao qual se juntam, todos os anos, mais dois milhões. Números que nos devem dar que pensar!
O relativismo cultural e as diferenças existentes em todas as sociedades são sempre algo que devemos todos compreender e aceitar, mas dentro de determinados limites. Molestar crianças com meses de idade, aprisionar mulheres ao peso das decisões dos homens e de uma comunidade inteira, por factos que poderão vir a acontecer, tais como relações extraconjugais ilícitas, e submetê-las ao peso do desprazer e sofrimento contínuos é algo, fundamentalmente, desumano.
Nestes costumes, deparamo-nos, acima de tudo, com uma diferença de género, onde as mulheres são vistas como meros objectos, apenas diferentes dos homens na sua constituição física e biológica. Se para nós, ocidentais habituados a um modo de vida marcado pela igualdade, ainda que por vezes aparente e ilusória, se tratam de atitudes completamente escabrosas, para outras sociedades, se a mulher nasceu nessa condição é porque Deus a enviou para cozinhar, lavar a roupa, ter filhos, servir o homem e sofrer.

Ana Melro, Publicado em A Página

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Ação














Tudo o que fazemos faz parte da nossa conduta, mas nem tudo o que fazemos constitui uma acção.

Enquanto dormimos, fazemos muitas coisas: respiramos, transpiramos, sonhamos, damos voltas e andamos sonâmbulos pela casa. Todas estas coisas fazemo-las inconscientemente. Fazemo-las, mas não nos damos conta disso, não temos consciência de que as fazemos, por isso não lhes vamos chamar acções.

Reservamos o termo “acção” para aquelas coisas que fazemos conscientemente, dando-nos conta de que as fazemos”.

(…) Uma acção é uma inferência consciente e voluntária de uma pessoa (o agente) no decurso normal dos acontecimentos, os quais sem a sua interferência teriam seguido um caminho diferente. Uma acção consta, assim, de um evento que acontece graças à interferência de uma agente e de um agente que tenha a intenção de interferir de modo a que tal evento aconteça”.

MOSTERIN, Jesus – Racionalidad y Acción Humana. Madrid: Alianza Universidad, 1987 .

Imagem: A Dança, Henri Matisse,1909
óleo em tela
260 × 389 cm
Museu Hermitage

Pena de Morte














Se a morte é o pior mal, a pena capital será a pior punição. Mas visto que o pior crime merece a pior punição, com base no princípio da proporcionalidade, a pessoa que comete o pior crime merece ser morta. Uma vez que existe algo que é o pior crime (…) segue-se que existe pelo menos um tipo de crime que merece a pena capital.

David S. Oderberg, Ética Aplicada - Uma abordagem não consequencialista,
tr. Maria José Figueiredo, Principia, p. 1

quinta-feira, 21 de outubro de 2010















Todos nós distinguimos intuitivamente entre as coisas que fazemos e aquelas que nos acontecem. Nas coisas que fazemos há uma certa causalidade ou iniciativa que parte de nós. Naquelas que nos acontecem limitamo-nos a ser receptores de efeitos que nós não iniciámos.
Comprar uma cautela é algo que eu faço; que me saia a lotaria é algo que me acontece. Suicidar-me é algo que eu faço; morrer é algo que me acontece. Quando o ladrão me rouba a carteira, o roubo da minha carteira é algo que o ladrão realiza ou faz, mas é algo que a mim me acontece. A causa ou origem da acção está no gatuno, não em mim. Ele rouba-me, eu sou roubado.
A distinção entre a voz activa e a voz passiva dos verbos – comum a muitas línguas – reflecte esta dicotomia: acção e paixão, o que fazemos e o que nos acontece.
Entre as coisas que fazemos, fazemos umas voluntariamente, porque queremos fazê-las, enquanto outras fazemo-las sem querer.
Fazemos voluntária ou intencionalmente as coisas que fazemos querendo fazê-las, consciente e propositadamente. Em tais casos dizemos que temos a intenção ou o propósito de fazer o que fazemos.

E. Anscombe, Intención (Introdução à edição espanhola da Paidós)
Luís Rodrigues, Filosofia 10ºAno, Plátano Editora, 2007, p.71

Imagem: NIKO

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

A ideia de dignidade humana













Kant pensava que os seres humanos ocupam um lugar especial na criação. Naturalmente, não era o único a pensar assim. Trata-se de uma velha ideia: Desde a Antiguidade os seres humanos consideraram-se essencialmente diferentes de todas as outras criaturas – e não apenas diferentes, mas melhores. De facto, os seres humanos consideram-se tradicionalmente muitíssimo frabulosos. Kant certamente que o fez. Do seu ponto de vista, os seres humanos têm «um valor intrínseco, isto é, dignidade» que lhes dá valor «além de qualquer preço». Os outros animais, pelo contrário, têm apenas valor na medida em que servem os propósitos humanos. Nas suas Lições de Ética (1779), kant escreveu:
Mas no que diz respeito aos animais, não temos deveres directos. Os animais [...] existem apenas como meios para um fim. Esse fim é o homem.
James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, Gradiva, Filosofia Aberta, Janeiro 2004, p. 189

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A filosofia faz-se colocando questões

A filosofia faz-se colocando questões, argumentando, ensaiando ideias e pensando em argumentos possíveis contra elas, e procurando saber como funcionam realmente os nossos conceitos.

A preocupação fundamental da filosofia é questionar e compreender ideias muito comuns que usamos todos os dias sem pensar nelas. Um historiador pode perguntar o que aconteceu em determinado momento do passado, mas um filósofo perguntará: «O que é o tempo?» Um matemático pode investigar as relações entre os números, mas um filósofo perguntará: «o que é um número?» Um físico perguntará o que constitui os átomos ou o que explica a gravidade, mas um filósofo irá perguntar como podemos saber que existe qualquer coisa fora das nossas mentes. Um psicólogo pode investigar como as crianças aprendem uma linguagem, mas um filósofo perguntará: «Que faz uma palavra significar qualquer coisa?» Qualquer pessoa pode perguntar se entrar num cinema sem pagar está errado, mas um filósofo perguntará: «O que torna uma acção boa ou má?»

Não poderíamos viver sem tomar como garantidas as ideias de tempo, número, conhecimento, linguagem, bem e mal, a maior parte do tempo; mas em filosofia investigamos essas mesmas coisas. O objectivo é levar o conhecimento do mundo e de nós um pouco mais longe. É óbvio que não é fácil. Quanto mais básicas são as ideias que tentamos investigar, menos instrumentos temos para nos ajudar. Não há muitas coisas que possamos assumir como verdadeiras ou tomar como garantidas. Por isso, a filosofia é uma actividade de certa forma vertiginosa, e poucos dos seus resultados ficam por desafiar por muito tempo.

Thomas Nagel
Texto retirado de Que Quer Dizer Tudo Isto?, de Thomas Nagel

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Uma razão para estudar filosofia


















Uma razão para estudar filosofia é o facto de esta lidar com questões fundamentais acerca do sentido da nossa existência. A maior parte das pessoas, num ou noutro momento da vida, já se interrogou a respeito de questões filosóficas. Por que razão estamos aqui? Há alguma demonstração da existência de Deus? As nossas vidas têm algum propósito? O que faz com que certas acções sejam moralmente boas ou más? Podemos alguma vez ter justificação para violar a lei? Poderá a nossa vida ser apenas um sonho? É a mente diferente do corpo, ou seremos apenas seres físicos? Como progride a ciência? O que é a arte? E assim por diante.

J. Gaarder,O Mundo de Sofia, Editorial Presença, Lisboa, 1995, p.12

Estereótipo do Filósofo




















Um estereótipo do filósofo representa-o (ou representa-a) confinado todo o dia numa sala solitária, eternamente contemplando - como se não houvesse amor ou sexo na vida de um filósofo dedicado.

Colin McGinn,Como se faz um Filósofo, Editorial Bizâncio, Lisboa, 2007,p.12

Imagem:O Pensador, Rodin

sábado, 2 de outubro de 2010

Questões Filosóficas





















(...) Mas o que eu quero dizer é: como podem duas pessoas discutir e comparar uma experiência totalmente privada, como saborear uma batata frita? Se partirmos esta batata ao meio e cada um comer metade – deu-lhe a metade dele -, estaremos a comer a mesma batata e a partilhar essa experiência. Mas, o que sente a outra pessoa ao saborear a batata? Isso não podemos partilhar... é pessoal. Pode ser completamente diferente para toda a gente. Como posso eu saber como a batata lhe sabe a si? – enfiou mais um par delas na boca, presumivelmente para não se esquecer de como lhe sabiam a ela.
Ben nunca tivera uma conversa assim. Supôs que era aquilo a que se chamava uma questão filosófica. Todos os seus amigos estavam de acordo em que a filosofia era para totós. E talvez algumas raparigas, mas só as feias. A mulher não era verdadeiramente uma totó, apenas um pouco estranha. E era, tinha de admniti-lo, tudo meno feia.

Lucy Eyre, O Dia Em Que Sócrates Vestiu Jeans, Casa das Letras, 2007, p.39