quinta-feira, 25 de novembro de 2010
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
Acto Gratuito
No célebre romance de André Gide, Les caves du Vatican, o herói, um jovem muito imaginativo, quer provar a si próprio que se podem executar certos actos sem qualquer razão válida. Tais actos não teriam fundamento senão em si próprios.
O jovem lança à linha um viajante desconhecido que ocupa com ele a mesma cabina do comboio. É um assassínio sem razão: não se lhe pode atribuir qualquer um dos motivos convencionais que acompanham os homicídios: interesse material, vingança, demência, paixão, agressividade social, etc.
Com este exemplo, Gide assinala a possibilidade do acto puro, do acto gratuito, e pretende demonstrar que, ao longo da sua existência, o homem é capaz de executar acções puramente externas a si próprio, sem qualquer compromisso. Quem não vê, porém, que a teoria do acto gratuito se baseia num postulado artificial? Sem dúvida, em si mesmo o acto parece independente de qualquer causa. Contudo, o facto de querer que ele exista, executando-o, é suficiente para o provocar. Este acto tem, portanto, uma causa e é bastante paradoxal pretender que a não tenha. O herói foi impelido a agir a fim de demonstrar que o seu pensamento estava correcto.
O jovem lança à linha um viajante desconhecido que ocupa com ele a mesma cabina do comboio. É um assassínio sem razão: não se lhe pode atribuir qualquer um dos motivos convencionais que acompanham os homicídios: interesse material, vingança, demência, paixão, agressividade social, etc.
Com este exemplo, Gide assinala a possibilidade do acto puro, do acto gratuito, e pretende demonstrar que, ao longo da sua existência, o homem é capaz de executar acções puramente externas a si próprio, sem qualquer compromisso. Quem não vê, porém, que a teoria do acto gratuito se baseia num postulado artificial? Sem dúvida, em si mesmo o acto parece independente de qualquer causa. Contudo, o facto de querer que ele exista, executando-o, é suficiente para o provocar. Este acto tem, portanto, uma causa e é bastante paradoxal pretender que a não tenha. O herói foi impelido a agir a fim de demonstrar que o seu pensamento estava correcto.
Albert Collette, Introdução à Psicologia Dinâmica
Responsabilidade
Três cantores atravessavam o deserto. Como eram modestos, cada um tinha a sua tenda, as suas instalações e provisões. Vamos dar nomes aos nossos cantores errantes: Lena, Poppy e Barrington. A vida no deserto não é uma vida feliz, e embora Lena e Poppy se dêem bem a cantar em dueto como sopranos, desagrada-lhes os tons barítonos de Barrington. Tanto Lena como Poppy desconhecem que a outra não gosta do barítono Barrington; elas não falam sobre esses assuntos. A relação com Barrington deteriora-se tanto que as mulheres, independentemente e sem conhecimento da outra, decidem que têm de o matar. Bem, no deserto está calor e o canto dele é bastante mau.
Uma noite, quando Barrington está a dormir, Poppy entra furtivamente na tenda dele e deita veneno no seu depósito de água. Poppy regressa à sua tenda. Um pouco mais tarde, Lena, sem saber da incursão de Popper, vai até à tenda de Barrington em bicos dos pés, encontra o contentor de água dele e parte-lhe o fundo, para que a água vaze. Lena esgueira-se de volta para a sua tenda. Logo pela manhã, antes de Barrington acordar, as mulheres arrumam as coisas delas e põem-se a caminho, a cantar juntas, deixando Barrington sozinho. Quando este acorda, encontra o seu contentor de água vazio; cantando profunda e tragicamente, ele morre de sede. A seu tempo, a polícia do deserto descobre o que aconteceu. O enigma é: alguma das jovens assassinou Barrington?
Peter Cave, Duas vida valem mais do que uma? - Enigmas filosóficos que o vão surpreender,
tr. Maria Campos, Academia do Livro, pp. 57,
Uma noite, quando Barrington está a dormir, Poppy entra furtivamente na tenda dele e deita veneno no seu depósito de água. Poppy regressa à sua tenda. Um pouco mais tarde, Lena, sem saber da incursão de Popper, vai até à tenda de Barrington em bicos dos pés, encontra o contentor de água dele e parte-lhe o fundo, para que a água vaze. Lena esgueira-se de volta para a sua tenda. Logo pela manhã, antes de Barrington acordar, as mulheres arrumam as coisas delas e põem-se a caminho, a cantar juntas, deixando Barrington sozinho. Quando este acorda, encontra o seu contentor de água vazio; cantando profunda e tragicamente, ele morre de sede. A seu tempo, a polícia do deserto descobre o que aconteceu. O enigma é: alguma das jovens assassinou Barrington?
Peter Cave, Duas vida valem mais do que uma? - Enigmas filosóficos que o vão surpreender,
tr. Maria Campos, Academia do Livro, pp. 57,
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Três problemas sobre a acção (perspectiva objectivista)
Algo de peculiar acontece quando encaramos a acção de um ponto de vista objectivo ou externo. Algumas das suas mais importantes características parecem desaparecer sob o olhar objectivo. A fonte das acções não parece já poder ser atribuída a agentes individuais, tornando-se ao invés componentes do fluxo de acontecimentos no mundo do qual o agente é uma parte. A maneira mais simples de produzir este efeito é pensar na possibilidade de todas as acções estarem causalmente determinadas, mas esta não é a única maneira. A fonte essencial do problema é uma perspectiva das pessoas e das suas acções enquanto parte da ordem natural, seja esta determinada ou não. Essa concepção, se nela insistirmos, conduz à sensação de que não há quaisquer agentes, de que nada nos pode valer e de que não somos responsáveis pelo que fazemos. Contra este juízo rebela-se a perspectiva interior do agente. A questão é saber se essa perspectiva pode resistir aos efeitos debilitantes de uma perspectiva naturalista.
Na verdade, o ponto de vista objectivista gera três problemas sobre a acção […]. O primeiro problema […] é o problema metafísico geral da natureza da agência. Pertence à filosofia da mente.
O Boneco de Palha, de Francisco Goya (1746-1828). Quando vemos as nossas acções como acontecimentos no mundo natural, podemos ficar com a sensação de que estamos a ser levados pelo universo como pequenos destroços.
A questão «O que é a acção?» é muito mais lata do que o problema do livre-arbítrio, pois aplica-se até à actividade das aranhas e aos movimentos periféricos, inconscientes ou subintencionais dos seres humanos no decurso da actividade mais deliberativa […]. Aplica-se a qualquer movimento que não seja involuntário. A questão está conectada com o nosso tema porque o meu agir — ou o agir de outra pessoa — parece desaparecer quando concebemos o mundo objectivamente. Não parece haver lugar para a agência num mundo de impulsos neuronais, reacções químicas, e movimentos e ósseos e musculares. Mesmo que acrescentemos sensações, percepções e sentimentos, não obtemos a acção ou o agir — ficamos apenas com o que acontece. […]
O que vou discutir são dois aspectos do problema do livre arbítrio, que correspondem às duas maneiras nas quais a objectividade ameaça as suposições correntes sobre a liberdade humana. Chamo a um deles o «problema da autonomia» e ao outro o «problema da responsabilidade»; o primeiro parece inicialmente um problema sobre a nossa própria liberdade e o segundo um problema sobre a liberdade alheia. Uma perspectiva objectiva das acções como acontecimentos na ordem natural (determinada ou não) produz uma sensação de impotência e futilidade com respeito ao que nós próprios fazemos. Debilita igualmente certas atitudes básicas relativamente a todos os agentes — aquelas atitudes reactivas […] que dependem da atribuição de responsabilidade. É o segundo destes aspectos que é geralmente referido como o problema do livre-arbítrio. Mas a ameaça à nossa concepção das nossas próprias acções — a sensação de que estamos a ser levados pelo universo como pequenos destroços — é igualmente importante e merece igualmente a designação. Os dois problemas estão conectados. A mesma perspectiva externa que ameaça a minha própria autonomia ameaça igualmente o meu sentido da autonomia alheia, e isto por sua vez faz os outros parecerem objectos desadequados de admiração e desprezo, ressentimento e gratidão, censura e louvor.
Thomas Nagel, A Perspectiva de Nenhures, 1986
Imagem: Goya, O BONECO DE PALHA (1792) 2,6x1,6 (desenho para tapeçaria)
Na verdade, o ponto de vista objectivista gera três problemas sobre a acção […]. O primeiro problema […] é o problema metafísico geral da natureza da agência. Pertence à filosofia da mente.
O Boneco de Palha, de Francisco Goya (1746-1828). Quando vemos as nossas acções como acontecimentos no mundo natural, podemos ficar com a sensação de que estamos a ser levados pelo universo como pequenos destroços.
A questão «O que é a acção?» é muito mais lata do que o problema do livre-arbítrio, pois aplica-se até à actividade das aranhas e aos movimentos periféricos, inconscientes ou subintencionais dos seres humanos no decurso da actividade mais deliberativa […]. Aplica-se a qualquer movimento que não seja involuntário. A questão está conectada com o nosso tema porque o meu agir — ou o agir de outra pessoa — parece desaparecer quando concebemos o mundo objectivamente. Não parece haver lugar para a agência num mundo de impulsos neuronais, reacções químicas, e movimentos e ósseos e musculares. Mesmo que acrescentemos sensações, percepções e sentimentos, não obtemos a acção ou o agir — ficamos apenas com o que acontece. […]
O que vou discutir são dois aspectos do problema do livre arbítrio, que correspondem às duas maneiras nas quais a objectividade ameaça as suposições correntes sobre a liberdade humana. Chamo a um deles o «problema da autonomia» e ao outro o «problema da responsabilidade»; o primeiro parece inicialmente um problema sobre a nossa própria liberdade e o segundo um problema sobre a liberdade alheia. Uma perspectiva objectiva das acções como acontecimentos na ordem natural (determinada ou não) produz uma sensação de impotência e futilidade com respeito ao que nós próprios fazemos. Debilita igualmente certas atitudes básicas relativamente a todos os agentes — aquelas atitudes reactivas […] que dependem da atribuição de responsabilidade. É o segundo destes aspectos que é geralmente referido como o problema do livre-arbítrio. Mas a ameaça à nossa concepção das nossas próprias acções — a sensação de que estamos a ser levados pelo universo como pequenos destroços — é igualmente importante e merece igualmente a designação. Os dois problemas estão conectados. A mesma perspectiva externa que ameaça a minha própria autonomia ameaça igualmente o meu sentido da autonomia alheia, e isto por sua vez faz os outros parecerem objectos desadequados de admiração e desprezo, ressentimento e gratidão, censura e louvor.
Thomas Nagel, A Perspectiva de Nenhures, 1986
Imagem: Goya, O BONECO DE PALHA (1792) 2,6x1,6 (desenho para tapeçaria)
sábado, 20 de novembro de 2010
“Audiodescrição.pt - Ouço, logo vejo”
A sabedoria do corpo humano é tão poderosa que mesmo quando nos é retirado um sentido os restantes compensam essa falta. Imagine uma peça de teatro, um filme ou um programa de televisão idealizado para invisuais; capaz de transformar sons em verdadeiras imagens que se sentem ao ouvido. Já imaginou? Não precisa. O Grupo de Teatro e Associação Cultural, Companhia de Actores, já o fez e está apenas à espera que o deixem dar início ao espectáculo.
O projecto “Audiodescrição.pt - Ouço, logo vejo” consiste num curso de formação que tem como objectivo preparar alunos para serem futuros audiodescritores. A audiodescrição é um recurso tecnológico que permite que pessoas com deficiência visual possam ter acesso a produtos culturais como filmes, peças de teatro ou espectáculos de dança. O projecto “Audiodescrição.pt - Ouço, logo vejo” é, no fundo, um meio privilegiado de inclusão cultural de pessoas com deficiência visual.
Em Portugal existem, segundo dados da ACAPO, cerca de 160 mil pessoas com deficiência visual. Esta iniciativa é para elas que assim terão acesso ao que de melhor se faz ao nível audiovisual. Indirectamente como beneficiários estão igualmente os formandos do curso que certamente contribuirão para a implementação de um recurso ainda em fraca expansão em Portugal, que poderá significar também mais uma saída profissional no nosso país.
O projecto “Audiodescrição.pt - Ouço, logo vejo” consiste num curso de formação que tem como objectivo preparar alunos para serem futuros audiodescritores. A audiodescrição é um recurso tecnológico que permite que pessoas com deficiência visual possam ter acesso a produtos culturais como filmes, peças de teatro ou espectáculos de dança. O projecto “Audiodescrição.pt - Ouço, logo vejo” é, no fundo, um meio privilegiado de inclusão cultural de pessoas com deficiência visual.
Em Portugal existem, segundo dados da ACAPO, cerca de 160 mil pessoas com deficiência visual. Esta iniciativa é para elas que assim terão acesso ao que de melhor se faz ao nível audiovisual. Indirectamente como beneficiários estão igualmente os formandos do curso que certamente contribuirão para a implementação de um recurso ainda em fraca expansão em Portugal, que poderá significar também mais uma saída profissional no nosso país.
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
Stuart Mill
Filósofo e economista inglês, é o pensador liberal mais influente do século XIX. Filho de James Mill, John Stuart recebeu uma educação particular intensiva, a qual o iniciou no grego com três anos de idade e no latim (bem como em seis dos diálogos de Platão) com oito anos de idade (o próprio Mill comenta que o Teeteto talvez tenha sido um pouco demais para ele). Viveu a sua adolescência imerso nos interesses filosóficos e políticos do seu pai, até que um colapso nervoso, aos vinte anos de idade, o conduziu a uma reavaliação e a uma moderação da sua posição benthamiana. Daí em diante, influenciado por Saint-Simon e por outros, Mill defendeu uma apreciação mais sofisticada da influência das forças históricas na formação das ideias das pessoas e uma perspectiva menos cínica sobre as forças de reacção. A partir de 1831, a sua amizade com Harriet Taylor, uma senhora casada, foi determinante para a sua vida. Em 1849, após a morte do seu marido, casaram. Harriet Taylor morreu em 1858, em Avignon. A natureza da sua influência no pensamento de Mill é interessante e complexa.
Simon Blackburn
Simon Blackburn
Stuart Mill
É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito; um Sócrates insatisfeito do que um idiota satisfeito. E se o idiota, ou o porco, têm opinião diferente, é porque apenas conhecem o seu lado da questão. A outra parte da comparação conhece ambos os lados.
John Stuart Mill
John Stuart Mill
sábado, 6 de novembro de 2010
Identidade confusa
Um velho cowboy entra num bar e pede uma bebida.
Quando está a beber o seu uísque, uma jovem senta-se ao seu lado. A mulher volta-se para o cowboy e pergunta-lhe:
- O senhor é um cowboy a sério?
- Bem, passei a vida inteira num rancho a criar cavalos, a reparar vedações e a marcar gado, por isso acho que sim – responde ele.
- Eu sou lésbica – diz ela. – Passo o dia inteiro a pensar em mulheres. Quando me levanto de manhã, penso em mulheres. Quando tomo duche ou vejo televisão, tudo parece fazer-me pensar em mulheres.
Algum tempo depois, um casal senta-se ao lado do velho cowboy e pergunta-lhe:
- O senhor é um verdadeiro cowboy?
- Sempre pensei que sim – responde ele -, mas acabo de descobrir que sou lésbica.
Platão e um Ornitorrinco Entram num Bar, Filosofia com humor, de Daniel Klein, Thomas Cathcar, Dom Quixote, p.248
Quando está a beber o seu uísque, uma jovem senta-se ao seu lado. A mulher volta-se para o cowboy e pergunta-lhe:
- O senhor é um cowboy a sério?
- Bem, passei a vida inteira num rancho a criar cavalos, a reparar vedações e a marcar gado, por isso acho que sim – responde ele.
- Eu sou lésbica – diz ela. – Passo o dia inteiro a pensar em mulheres. Quando me levanto de manhã, penso em mulheres. Quando tomo duche ou vejo televisão, tudo parece fazer-me pensar em mulheres.
Algum tempo depois, um casal senta-se ao lado do velho cowboy e pergunta-lhe:
- O senhor é um verdadeiro cowboy?
- Sempre pensei que sim – responde ele -, mas acabo de descobrir que sou lésbica.
Platão e um Ornitorrinco Entram num Bar, Filosofia com humor, de Daniel Klein, Thomas Cathcar, Dom Quixote, p.248
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