Certa vez, quando questionado sobre a razão por que escrevia, Alfred Döblin, um dos maiores romancistas do século XX, respondeu que essa era uma pergunta que se recusava a fazer a si próprio. «O livro acabado não me interessa», disse ele, só o livro que estava a ser escrito, «o livro por vir.» A escrita era, para Döblin, uma acção que joeirava o presente no futuro, um fluxo constante de linguagem que possibilitava às palavras darem forma e nomearem a realidade que está num processo constante de formação. «O método não tem lugar na arte, a loucura é melhor», escreveu ele numa carta ao poeta italiano F: T: Marinetti, após este lhe ter proposto, no Figaro parisiense de 20 de Fevereiro de 1909, que os artistas adoptassem um «método futurista» na execução do seu labor, abraçando «a acção, a violência e a mudança industrial». «Trata do teu futurismo», instruiu Döblin o seu colega efusivo, «eu trato do meu döblinismo.»
(…) Era um homem de contradições estranhas: judeu prussiano que se converteu ao catolicismo já tarde na vida, socialista radical que se opôs aos princípios da Revolução Russa, psiquiatra que admirava Freud mas duvidava dos dogmas da psicanálise e proponente de uma literatura exuberante que transgredia constantemente as suas próprias regras mas buscava nos livros tradicionais da Bíblia a mitologia básica da sua ficção. O tema era a identidade em mutação do mundo do século XX, mas o herói era o homem comum, o Job do Antigo Testamento, sofredor mas não submisso, sonoro mas não estridente, epítome da vítima injustificada.
(…) Ainda assim, a sua concepção da língua como instrumento para, ao mesmo tempo, dar forma e compreender a realidade permanece, creio, totalmente válida hoje em dia. A língua, para Döblin, é uma coisa viva que não «reconta» o nosso passado, mas o «representa»: «obriga» a realidade a manifestar-se, escava as suas profundezas e traz à luz as situações fundamentais, grandes e pequenas, da condição humana». Permite-nos saber, efectivamente, porque estamos juntos. A maior parte das funções humanas é singular: não precisamos dos outros para respirar, caminhar, comer ou dormir. Mas precisamos dos outros para falar e receber o reflexo do que dizemos. A língua, como declarou Döblin, é uma forma de amar os outros.
pp.15-17
(…) Era um homem de contradições estranhas: judeu prussiano que se converteu ao catolicismo já tarde na vida, socialista radical que se opôs aos princípios da Revolução Russa, psiquiatra que admirava Freud mas duvidava dos dogmas da psicanálise e proponente de uma literatura exuberante que transgredia constantemente as suas próprias regras mas buscava nos livros tradicionais da Bíblia a mitologia básica da sua ficção. O tema era a identidade em mutação do mundo do século XX, mas o herói era o homem comum, o Job do Antigo Testamento, sofredor mas não submisso, sonoro mas não estridente, epítome da vítima injustificada.
(…) Ainda assim, a sua concepção da língua como instrumento para, ao mesmo tempo, dar forma e compreender a realidade permanece, creio, totalmente válida hoje em dia. A língua, para Döblin, é uma coisa viva que não «reconta» o nosso passado, mas o «representa»: «obriga» a realidade a manifestar-se, escava as suas profundezas e traz à luz as situações fundamentais, grandes e pequenas, da condição humana». Permite-nos saber, efectivamente, porque estamos juntos. A maior parte das funções humanas é singular: não precisamos dos outros para respirar, caminhar, comer ou dormir. Mas precisamos dos outros para falar e receber o reflexo do que dizemos. A língua, como declarou Döblin, é uma forma de amar os outros.
pp.15-17
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